Quem tem medo de Noémia de Sousa e de “Sangue Negro”?
Muito poucos saberão quem foi Noémia de Sousa. Zeca Afonso descreveu-a como a “mãe dos poetas moçambicanos". “Sangue Negro” é descrito como uma metáfora da violência exercida ao povo moçambicano
Querida(o) subscritora e subscritor,
Obrigada por me continuarem a ler e obrigada por me enviarem mensagens a mostrar empatia pela minha prosa que abarca ora vivências despidas de vergonha, ora aborda reflexões de mulher vintage dos anos 70, ora aborda reflexões que valem o que valem, mas que tal como as conversas de café, nos salvam tantas vezes do desânimo!
Hoje partilho convosco um trabalho que escrevi para o meu ´mui ´nobre Mestrado em Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto ( FLUP ) , para a disciplina de Literaturas Africanas do Professor Francisco Topa, que muita honra me deu realizar, e no qual depositei muito carinho, pois aborda a vida e obra de uma grande Mulher e jornalista na casa onde trabalho há mais de 20 anos: a Agência Lusa, e que infelizmente não consegui conhecer pessoalmente.
Foi, antes de mais, a poetisa pioneira em Moçambique, Para além de poetisa soube usar com mestria e deontologia o poder da caneta do jornalismo para não deixar esquecer as culturas africanas e as tormentas das mulheres da sua terra: Moçambique.
Quem tem medo de Noémia de Sousa e do seu “Sangue Negro”? Talvez ninguém! O cantor e poeta Zeca Afonso sabia da sua poesia comprometida (engagée) e descreveu-a como a “mãe dos poetas moçambicanos”.
Ela é considerada uma das vozes pioneiras da poesia moderna moçambicana e vale muito a pena ler, pelo menos, um poema desta diva da poesia africana, que nunca quis ser celebrada, que nunca quis editar um livro, mas que nunca se esqueceu de onde veio e nunca esqueceu o papel da mulher no mundo e que presa e deportada para Portugal, “por confrontar o sistema colonial”.
“Sangue Negro”
Quais as armas de Noémia de Sousa no Movimento Negritude?
Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu em Moçambique[1], a 20 de setembro de 1926, no distrito de Catembe, uma localidade fronteira à cidade de Maputo, do outro lado da baia.
Segundo explicou a própria, numa entrevista que deu a Nelson Saúde (Saúte, 1998), a mãe de Noémia de Sousa era filha de um alemão e de uma Ronga[2].
Fixou residência em Lisboa entre 1951 a 1964 em Portugal, para fugir à PIDE [3].
Por se opor ao Estado Novo, regime de Oliveira Salazar, Noémia de Sousa exila-se em Paris (França) entre 1964 e 1973, trabalha na Embaixada de Marrocos e usa nos seus textos o pseudónimo de Vera Micaia.
Ainda em Paris separa-se do marido em 1970 e em 1973 volta a Portugal, vivendo a Revolução do 25 de Abril de 1974.
No ano de 1975, ano da Independência de Moçambique, Noémia de Sousa não participa na cerimónia. Morre aos 76 anos de idade, em Cascais (Portugal), a 4 de dezembro de 2002, deixando uma filha: Virgínia Soares.
Em 2001, a Associação de Escritores Moçambicanos organizou e reuniu os poemas de Noémia de Sousa e publica-os num volume chamado “Sangue Negro”.
O livro reúne 46 poemas escritos entre 1948 e 1951. Noémia foi influenciada pelo neorrealismo português, mas também pela diáspora africana, designadamente na América (Gates et al., 2012, pp. 445-446).
Foi com o escritor José Craveirinha, precursora da nova poesia moçambicana, marcando o movimento literário na década de 50 em Moçambique.
Noémia de Sousa começou a trabalhar no jornalismo em Portugal em 1956, sempre na área do jornalismo da agência.
Inicialmente na agência ANI, depois nos escritórios da Reuters em Lisboa e depois na ANOP (que vira a ser a Lusa mais tarde em 1986), vindo mais tarde a pertencer aos quadros a Agência Lusa[4].
Na peça da Lusa de 1995, pode ler-se que aos 68 anos de idade, Noémia de Sousa era uma ”jornalista ativa e especializada em assuntos africanos”, uma área que acompanhava e estudava desde a década de 50, quer como profissional de imprensa, quer como nacionalista, pela independência das colónias”(Serra, 1995).
E foi por esta altura, com a idade de 68 anos, que Noémia de Sousa conviveu, em Lisboa, com jovens intelectuais africanos que dinamizavam a Casa dos Estudantes do Império, designadamente Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Lúcio Lara ou Pinto de Andrade.
Noémia de Sousa nunca voltou a fixar residência em Moçambique para viver a sua reforma profissional, como havia desejado, mas se tivesse ido admitiu participar em atividades de caráter cívico na sua terra natal. Não alimentava projetos de carreira política, segundo a Lusa (Serra, 1995).
Movimento da Negritude e a Poesia de Noémia
Como disse Carmen Lucia T. Secco, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no prefácio da obra poética da edição brasileira, os poemas de Noémia “despertaram consciências, acenderam revoltas e dialogaram com o Movimento da Negritude”.
O título do livro - “Sangue Negro” - sua única obra publicada, é descrito por Luciana Brandão Leal como” uma metáfora e metonímia da violência imposta ao povo moçambicano” (Leal, 2021).
Noémia de Sousa foi amiga do escritor e jornalista moçambicano José Craveirinha, Junto com ele partilhavam preocupações e sonhos sobre Moçambique. O próprio escritor revela, numa entrevista a Rita Chaves em 2005 a “importância da intelectualidade mestiça de Lourenço Marques[5]:
“ (…) Nossa amizade se consolidou no Brado Africano, onde eu fiquei como
permanente na Redação. Ela trabalhava em um escritório, mas colaborava com o jornal. Ficamos muito amigos, compartilhávamos preocupações e sonhos.
Até escrevemos juntos um manifesto [...] Era uma fase de grande inquietação.
Estávamos ligados pela vontade de mudar. Tínhamos consciência da injustiça
que dividia essa sociedade” (Leal, 2021).
Segundo a especialista Secco, Noémia de Sousa foi presa e deportada para Portugal, “por confrontar o sistema colonial”.
Tal como este trabalho já tinha citado a Lusa a propósito da atividade de Noémia de Sousa como jornalista e poetisa, também a especialista Secco refere esses factos, referindo que a poetisa moçambicana continuou “as suas atividades pela independência, atuando como jornalista e tradutora” (Sousa, 2016).
Noémia de Sousa foi uma militante política. Uma militância e resistência política face ao colonialismo que transbordou para a sua poesia.
Ora, mesmo que não tivesse uma plena consciência da existência do movimento franco caribenho Negritude[6] (Riesz), que se iniciou em 1930 com Senghor, Noémia de Sousa escreve poesia que combate a colonização e que não deixa de enaltecer a mulher africana e os costumes africanos.
Algumas dessas características em cima elencadas estão plasmadas, por exemplo, no poema intitulado “Súplica”.
Ali, a poetisa moçambicana aborda a música como o garante da identidade de seu povo moçambicano. Ela espelha neste poema “Súplica” a hegemonia da música face ao degredo, prisão, tortura, escravidão ou a morte. Perante qualquer sacrifício, Noémia de Sousa defende que a música é a tábua de salvação, o garante da memória coletiva e identidade dos moçambicanos.
A poetisa diz mesmo que o povo moçambicano será sempre livre, desde que haja a música. Quase que podemos socorrer-nos de uma equação matemática simples e resumir que a língua está para a pátria, em Fernando Pessoa, como a música está para a pátria, em Noémia de Sousa.
Para Noémia de Sousa, a alma da cultura do seu povo passa pela música, como se demonstra neste trecho do poema “Súplica”:
(…) Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol “(Sousa, 2016)
Militância política na poesia vs militância cultural no jornalismo
A militância política de Noémia de Sousa: lírica moderna
Uma militância que se descobre nos versos, onde se descobrem ideias contra o colonialismo e pela libertação de Moçambique.
Em 1996, numa notícia avançada pela Agência Lusa, no âmbito de uma homenagem à poetisa pelo seu 70º aniversário realizada em Maputo, o Presidente da República de Moçambique, à data, Joaquim Chissano, declarou que a “poesia de Noémia de Sousa inspirou a luta de libertação e a criação de um sentimento de moçambicanidade” (Galamba, 1996).
Na poesia de Noémia encontra-se informação clara sobre a vida resiliente e de resistência das mulheres negras moçambicanas no período colonial, que são oprimidas e vítimas de violências várias. Uma poesia que permite ao leitor imaginar as atrocidades, a dor, a angustia, o sofrimento de um eu feminino que vivia silenciado e que passa a ser transmitido através da poetisa Noémia de Sousa.
Mas a poesia de Noémia de Sousa plural. “A voz de Noémia não é apenas feminina; é, também, coletiva. É uma voz tutelar, fundadora da poesia moçambicana. É uma voz plural”. (Leal, 2021, pp. 68-69).
A poesia de Noémia de Sousa dá voz aos homens negros, aos operários, estivadores, mineiros, e outros trabalhadores oprimidos, como recorda Ana Sofia Souto[7] , no seu artigo publicado a 4 de janeiro de 2021, intitulado “Ler Noémia de Sousa hoje”.
No poema “Moças das Docas”, Noémia de Sousa mostra pedaços da vida das mulheres que trabalhavam na prostituição na zona das docas e começa o poema com um “Somos”, onde ela própria se solidariza com estas irmãs conterrâneas e demonstra que é um fenómeno com vários elementos.
Neste poema, há também descrição dos homens que usufruem do negócio do prazer das moças das docas. São os homens loiros, remetendo para os colonizadores das potências europeias.
“Moças das Docas
Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuamas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa
descemos atraídas pelas luzes da cidade
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite
Viemos…
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
contra sedas que outros exibirão
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou
sem uma pincelada verde e forte
falando de esperança
Viemos…
E para além de tudo
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas
trouxemos esperanças.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
Em noites infindáveis de pesadelo
Sugar com seus lábios de velha
Nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos …
Oh si, viemos!
Sob o chicote da esperança
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos
saciaram generosamente fomes e sedes violentas
nossos corpos pão e água para toda a gente
Viemos …
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desespero e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo
partiu na crueldade fria e tilitante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta
E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade…
E regressemos, sem desespero nem esperança
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
Rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool, voltaremos aos telhados de zinco
Pingando cacimba,
Ao sem sabor do caril de amendoim
E ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável…
Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
Daqueles que nos roubaram e nos mataram
Valendo-se de nossas almas ignorantes e de nosso corpos macios”
Piedade não trará de volta nossas ilusões
De felicidade e segurança
Não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Piedade não é para nós. Notícias da Lusa: análise da “militância” cultural de Noémia de Sousa
Alguns dos temas jornalísticos tratados por Noémia de Sousa para a agência Lusa[8] eram dedicados a África e à cultura e poesia africanas, pois ela trabalhava para a editoria África.
Na notícia que escreveu a 19 de maio de 1988 com o título “Dia da África: Grupo diplomático africano comemora o XXV aniversário da OUA” (Sousa, 1988a), a jornalista antecipa “a projeção do documentário angolano Festa da Ilha, do realizador Orlando Fortunato, bem como a menção honrosa no III Festival de Cinema de Aveiro” e a declamação do poema “Elegia à África”, do poeta cabo verdiano Gabriel Mariano, e do poema “Deixar passar o meu povo”, de Noémia de Sousa, e declamado na cerimónia pela conterrânea Elsa Noronha.
A jornalista conseguiu, através das suas fontes diplomáticas cabo verdianas, antecipar informação minuciosa sobre o roteiro cultural que serviria para assinalar o Dia de África, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
O seu cuidado preciosista ao dar informação cultural, revela além de profissionalismo, um afeição especial pela temática da cultura africana dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
Numa outra notícia da Lusa, datada de 22 de maio de 1988, intitulada “O III Festival de Cinema de Aveiro, Viva o IV”, a jornalista moçambicana descreve, citando as devidas fontes, o risco existente sobre “milhares de quilómetros de película” de filmes de Luanda (Angola) e Maputo (Moçambique) .
A jornalista deixa transparecer o seu compromisso com a cultura africana, destacando o anuncio de Luís Pina, diretor da Cinemateca Nacional e membro do júri de cinema, à data, que existiam recentes acordos para a conservação de filmes com Luanda e Maputo (Sousa, 1988b).
Há preocupação com as dificuldades de preservação da cultura cinematográfica africana na peça jornalística de Noémia de Sousa, ou seja, pode concluir-se que de certa forma o seu sentimento pan africanista nota-se não apenas na sua poesia, mas também no exercício do jornalismo.
Tanto na poesia como nas peças jornalísticas antecipa-se influências dos movimentos que estavam em ascensão, designadamente o da negritude e do pan-africanismo[9] (Barbosa, 2019).
O escritor moçambicano Nelson Saúte destacou numa entrevista à Lusa, em 2001 (Rodrigues, 2001), ano da 1ª publicação da obra poética “Sangue Negro”, e da qual fez o prefácio, que Noémia de Sousa partilhou “sem as ler, as ideias defendidas na época por grandes por nomes africanos, como Léopold Senghor e Aimé Cesaire (precursores de movimento Negritude).
A poetisa saltou as fronteiras da sua terra África (Moçambique), para se “assumir como africana: "África da cabeça aos pés. Essa sou eu", escreveu.
Uma frase que é, inevitavelmente, emblemática da sua obra, lê-se na notícia da Lusa (Rodrigues, 2001).
Ainda na mesma peça jornalística, Nélson Saúde refere que Noémia de Sousa transportou para o jornalismo o “rigor, o saber, a cultura, mas também a simplicidade e incisão da sua obra”.
“Na Agência Lusa, e antes na ANI e ANOP, onde trabalhou, Noémia de Sousa, foi sempre a “jornalista que sabia tudo de África e não só, a pessoa que, como ninguém, ao tirar as dúvidas dos colegas mais novos, ensinava sempre qualquer coisa mais”.
Um outro exemplo do seu pan africanismo pode perceber-se na notícia intitulada “Morte de Manuel Ferreira ensombra colóquio sobre Literaturas Africanas, em Rogate, Inglaterra”. Noémia de Sousa, a jornalista deslocada para fazer a cobertura do colóquio sobre as Literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique, teve de informar sobre a inesperada morte daquele especialista das literaturas dos PALOP.
A repórter recorreu a várias citações de professores universitários e organizadores do colóquio, revelando um elevado empenho na busca de informação sobre homem que se dedicou à literatura africana (Sousa, 1992). Mas, naturalmente, a repórter parece ‘engagée’ com o pan africanismo nesta peça, visto que valoriza o trabalho de um indivíduo que defendeu as literaturas africanas, para que também elas tivessem uma voz no mundo.
Noémia de Sousa representa a mulher africana guerreira, resiliente e valente, que luta pelos direitos e liberdades dos povos oprimidos pelo colonialismo, como outras mulheres africanas o fizeram, designadamente a rainha Nzinha de Angola (1582 – 1663), primeira mulher a chefiar o reino do Ndongo, ou Funmilayo Ransomé Kuti (1900-1978), a primeira ativista mulher e feminista da Nigéria.
Os seus poemas questionam as estruturas sociais, a repressão contra a mulher e, sobretudo, ressaltam a importância da libertação política de Moçambique. Em meados do século XX, sua voz ecoa resistência, ultrapassando “os limites egotistas, espaciais e temporais” (MENDONÇA, apud SOUSA, 2001, p. 155).
Noémia morreu em Cascais a 4 de dezembro de 2002.
Segundo noticiava a Lusa, a 5 de dezembro de 2002, a “poetisa inspiradora de gerações intelectuais e políticas, “mãe dos poetas moçambicanos”, como Zeca Afonso
a definiu, e jornalista, morreu em Cascais.
Contava 76 anos. Nunca quis publicar um livro, mas graças à teimosia de um dos seus “seguidores”, o escritor Nelson Saúte, foi lançado Sangue Negro, em Setembro de 2001, uma compilação dos seus poemas, meio século depois de escritos” (Lusa, 2002).
Conclusão
Respondendo à questão inicial lançada neste trabalho – Quais as armas da Negritude em Noémia de Sousa? – não se pode concluir de forma categórica que a poetisa e jornalista Noémia de Sousa tenha usado, de forma consciente, a poesia e o jornalismo como as suas armas no movimento literário da Negritude (1930-1960).
Porém, Noémia de Sousa usou, com absoluta certeza, a escrita como um modo de evasão e uma forma de expressar a sua revolta contra o colonialismo de que padeceu Moçambique, bem como uma forma de partilhar simpatia pela autodeterminação do seu seu povo.
Por um lado o combate sistemático contra o colonialismo, por outro lado o enaltecimento da sua África[10] e o enaltecimento dos marginalizados, principalmente as mulheres moçambicanas, mas também dos operários e estivadores, demonstram que a poetisa e jornalista sempre se pautou pelos ideais do movimento literário da Negritude.
Tal como um músico encontra na combinação das notas musicais as melodias certas para transmitir emoções e / ou mensagens, também Noémia de Sousa usou a arte da escrita explicar os seus sentimentos e parar agitar a consciência do mundo em geral sobre a realidade moçambicana.
Noémia de Sousa teve o privilégio de contactar com jornais desde criança. Aprendeu a ler entre os três e os quatro anos. Foi considerada uma intelectual do seu tempo. A escrita corria-lhe nas veias naturalmente. A escrita seria o veículo vital para transmitir a sua revolta contra a opressão do povo colonizado.
A época mais ativa para escrever poesia foi quando Noémia tinha entre 22 e 25 anos. A idade dos sentimentos à flor da pele, a idade da tomada da consciência política, a idade de acreditar ser possível mudar o ‘status quo’. A idade do questionamento e das utopias mais intensas.
O exílio para Portugal, e seguramente a necessidade natural de um salário, levaram encaminharam Noémia para o jornalismo cinco anos depois de chegar a Lisboa.
Dedicar-se-ia a fazer um jornalismo de agência, talvez para fugir a jornais conotados com algum partido, ou talvez porque o jornalismo de agência tenta ser mais imparcial, foge dos adjetivos e usa-se das oficiais para sustentar a notícias.
Trabalhou em várias agências de informação, levando o rigor jornalístico sobre África aos leitores nacionais e internacionais.
Desta forma, o trabalho pode demonstrar que a poesia e o jornalismo andaram de mãos dadas na vida de Noémia de Sousa, enquanto forma de liberdade de expressão.
A escrita foi a sua arma possível e a mais fiel ao longo da vida, onde ela se apoiou para viver ou, no mínimo, para sobreviver emocionalmente, por um lado, e economicamente por outro. Afinal, foi o jornalismo que lhe permitiu realizar-se através da escrita até à idade da reforma.
Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
Para aguardar o dia luminoso que se avizinha
Quando mãos molhadas de ternura vierem
Erguer nossos corpos doridos submersos no pântano
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade e formos novamente mulheres!
[1] País africano, localizado na África Austral, antiga colónia portuguesa e que conseguiu a independência em 1975.
[2] Povo banto que habita os arredores de Maputo, a sul de Maputo
[3] Polícia Política Portuguesa
[4] Agência Lusa é criada em 1987 com a fusão das agências ANOP e da NP
[5] Atual cidade de Maputo, a capital de Moçambique
[6] Movimento Negritude movimento literário de autores africanos e da diáspora africana de língua francesa entre 1930 e 1960. Léopold Sédar Senghor (1906-2001) é um poeta, filósofo e chefe de Estado senegalês (1960-1980), incarna como nenhum outro, através da sua vida, a associação de negritude, francofonia e cultura africana.
[7] Licenciada em Estudos Portugueses e Mestre em Ciências da Linguagem, variante de Linguística, pela FCSH/NOVA; "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Licenciados" (2016) e o "Prémio de Mérito e Excelência Melhores Mestres" (2018)
[8] Agência Lusa foi criada em 1987 e é atualmente a maior agência de língua portuguesa do mundo, com cerca de 250 jornalistas a trabalhar todos os dias do ano, 24 horas por dia, que produzem uma média daria de 500 notícias.
[9] Pan-africanismo é uma doutrina que surge como uma ideologia política pós-colonial, com o objetivo de unir os povos do continente africano para conseguirem falar em uníssono no contexto global. Foi o período em que ocorreu a grande maioria das independências nacionais africanas: Marrocos (1956), Tunísia (1956), Sudão (1956), Gana (1957), Guiné (1958), Benim, Camarões, República Democrática do Congo, Congo, Gabão, Chade, Rep. Centro Africana, Madagáscar, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Costa do Marfim, Senegal, Togo e Burkina Faso (1960), Serra Leoa, Tanzânia, Uganda (1961), Ruanda, Argélia (1962), Quénia (1963)
[10] Quando Noémia de Sousa escrevia nos seus poemas a palavra África referir-se a Moçambique, como explicou em entrevista à Lusa
Que belo texto. Parabéns